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Os cuidados de nutrição para a população portuguesa não estão a ser acautelados

Os cuidados de nutrição para a população portuguesa não estão a ser acautelados
15 de Fevereiro de 2021

Dietas ou alimentos, mesmo que saudáveis, não protegem o organismo contra nenhuma doença contagiosa, alerta Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas. Permitem, sim, o reforço do sistema imunitário e uma melhor resposta à doença. 


Bastonária da Ordem dos Nutricionistas desde 2012, Alexandra Bento fala da importância de destrinçar a informação falsa da verdadeira. Mas também do papel dos nutricionistas no Serviço Nacional de Saúde. Os cuidados hospitalares contam com 300 nutricionistas, quando o desejável seria 600, num rácio de um para 50 camas, enquanto os cuidados primários com cem nutricionistas, longe dos 900 necessários, num rácio de um por 12 mil utentes. A Ordem dos Nutricionistas foi criada em 2010 e tem 4924 profissionais inscritos.



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Têm surgido muitos conselhos que insinuam que dietas, como a mediterrânica, dão imunidade contra a COVID-19. 

A maior parte da informação pouco tem que ver com a evidência científica. A dieta mediterrânica é um padrão alimentar saudável. Como tal, melhora o nosso estado nutricional e, de alguma maneira, o sistema imunitário fica otimizado. Mas não podemos agarrar-nos a um alimento milagroso para dizer que tem uma ação específica sobre o sistema imunitário. A alimentação é um todo. Deve providenciar os alimentos para termos os nutrientes necessários para um bom estado nutricional. Indivíduos com um estado nutricional adequado ficam com o sistema imunitário reforçado, o que permite que, face a uma doença, possam ter uma melhor recuperação. Nesta altura, vemos, por um lado, os profissionais de saúde a tentarem desmistificar conceitos, muitas vezes errados, e, por outro, a braços com um conjunto de contrainformação que nada guarda da relação com a evidência científica. E, no final do dia, o que acontece? Indivíduos sem uma boa literacia alimentar, para conseguirem descortinar entre o certo e o errado, podem ver-se na malha da desinformação e agarrar-se a falsos conceitos, vendidos como milagres. O tratamento da COVID-19 está circunscrito aos profissionais de saúde e deve ser feito nos sítios certos, que é o caso dos hospitais.


Algumas informações surgem associadas a nutricionistas. A ordem tem recebido queixas?

Neste período de pandemia, a Ordem dos Nutricionistas não tem qualquer registo, informação ou queixa contra um nutricionista que possa estar a veicular informação errada no âmbito da COVID-19. Não quer dizer que não exista. No mundo virtual em que vivemos, é difícil acompanhar a quantidade de notícias. Pode acontecer que um indivíduo se faça passar por nutricionista. Até pode não dizer que o é, mas veicular informações na área da alimentação e da nutrição. Os nutricionistas devem reger-se pela melhor evidência científica, como qualquer outro profissional de saúde. Qualquer cidadão que suspeite de uma informação menos precisa de um profissional deverá colocar a questão à Ordem dos Nutricionistas. Os consumidores podem confirmar a identidade no registo nacional dos nutricionistas. Quando o consumidor pretende os serviços de um nutricionista, ou se vir qualquer conteúdo num jornal, numa revista ou numa rede social, com determinado indivíduo a falar de questões da área da alimentação e da nutrição, deve confirmar se é nutricionista. Se não for, ou se não ficar satisfeito com o serviço, deve denunciar. É desta forma que podemos proteger o cidadão. Porque os profissionais não podem veicular informação incorreta. 



Os hábitos alimentares alteraram-se com a pandemia?

Na altura do confinamento [março de 2020], a Direção-Geral da Saúde fez um inquérito a adultos, o REACT-COVID, que trouxe alguns dados relativamente preocupantes. Durante o isolamento, os portugueses alteraram os hábitos. E, por vezes, para pior, na dimensão da insegurança alimentar, ou seja, na dificuldade em acederem a alimentos para terem uma dieta saudável. Um em cada três portugueses reportou essa dificuldade. É imensamente preocupante. E ainda mais quando algumas famílias vivem momentos de dificuldade económica. As questões de desigualdade social adensaram-se, o que tem impacto na alimentação. E, dado que a alimentação é determinante para a boa saúde, podem estar a acentuar-se as desigualdades na saúde. Se somarmos a isto o momento em que as estruturas de saúde estão muito voltadas para a COVID-19, o que se compreende, verificámos que estão a ser deixados de lado indivíduos com outras doenças, nomeadamente crónicas, como as cardiovasculares, o cancro e a diabetes, que até guardam relação com a alimentação. Podemos estar perante uma mistura bastante perigosa. Estas doenças não estão de quarentena. É preciso que os serviços de saúde tenham uma organização que responda à pandemia, mas que não deixe de lado as outras doenças. Muitas agravam-se com a desigualdade e a precariedade económica. 



Qual o papel da nutrição nos grupos de risco, como diabéticos, obesos e hipertensos?

Um indivíduo com COVID-19, e com estas doenças, uma vez curado, deve repensar os hábitos alimentares para, num ou noutro sobressalto da vida, poder estar mais apto para lutar. A ordem elaborou um guia para nutricionistas, com orientações precisas para doentes internados com COVID-19. Primeiro, deve avaliar o estado nutricional e, depois, fazer uma prescrição nutricional adequada. Os doentes internados, nos cuidados intensivos ou não, recuperam melhor se tiverem um suporte nutricional otimizado. Tem sido uma das atividades dos nutricionistas nos hospitais públicos. Mas são muito poucos aqueles que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS). E há um número insuficiente de nutricionistas nos cuidados primários, nos lares – e veja-se a falta que fazem e aquilo que se notou nos últimos tempos –, nas escolas e na indústria alimentar. Os cuidados de nutrição para a população portuguesa não estão a ser acautelados. Um indivíduo que queira ir a uma consulta de nutrição tem de a pagar. Não podemos dizer que os portugueses têm acesso a cuidados de nutrição, tal como é reclamado noutras áreas. Mas, neste momento particularmente difícil, houve um contacto muito próximo entre os nutricionistas do SNS e a ordem, numa perfeita retroação, para que a resposta fosse atempada e adequada.



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Tem havido a tentativa de colar os suplementos alimentares à prevenção da COVID-19. Faz sentido?

A alimentação garante um bom estado nutricional e a otimização do sistema imunitário. Não existe evidência científica de que qualquer suplemento alimentar, ou superalimento, possa prevenir ou tratar a COVID-19. Essa foi uma das informações falsas que mais circularam nas redes sociais, no início da pandemia. A Ordem dos Nutricionistas teve um papel muito ativo nesse domínio, com comunicados para tentar contrariar a informação falsa, e espalhando a veiculada por autoridades competentes na matéria, como a Organização Mundial da Saúde. Este tipo de informação é perigosa, pois dá uma falsa sensação de segurança.



Que medidas é importante tomar para que os hábitos alimentares dos portugueses melhorem? 

A alimentação inadequada é o quinto fator de risco para perdermos anos de vida saudável, o que é o mesmo que dizer que se todos os portugueses tivessem acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficiente, e se tivessem literacia suficiente para poderem ter uma alimentação saudável, então viveríamos mais, mas também melhor. Os dados do último Inquérito Alimentar Nacional diziam que, de facto, os portugueses comiam, mais do que o que era necessário, carne vermelha e sal, e que, por outro lado, havia insuficiência de cereais integrais e de hortofrutícolas. Genericamente, esta alimentação faz com que os portugueses padeçam de um conjunto de doenças e que se estejam a reduzir os anos de vida saudável, um indicador muito importante, porque estamos a viver mais, e isso é uma conquista importantíssima, mas importa que se consiga viver mais e melhor. O Estado não pode desconsiderar uma medida que tomou, salvo erro, em 2017, que foi a criação da Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável. É uma estratégia que quer envolver todos os setores e áreas governativas, desde a saúde à agricultura, à economia, à educação. Assinaram esta estratégia comprometendo-se com um conjunto de medidas para melhorar os hábitos alimentares dos portugueses. Mas em 2020, e já em 2019, pouco ou nada foi feito para levar a efeito essas medidas, que seguem as orientações de instâncias internacionais, como a Organização Mundial da Saúde. Estão alinhadas com a estratégia europeia e com a melhor evidência científica. Mas não basta estar no papel, é preciso que saia do papel. 


De que forma podem as famílias fazer escolhas mais saudáveis e acessíveis?

As famílias têm de ter a necessária literacia para poderem fazer essa alimentação saudável. Mas é preciso também poder fazer. E poder fazer envolve a dimensão económica. Não podemos querer que famílias que não têm capacidade económica possam ter uma alimentação saudável. Mas, por outro lado, é possível comer bem com menos dinheiro do aquele que porventura algumas famílias estão a gastar na alimentação. É impossível comer bem com pouquíssimo dinheiro. Agora, é possível comer bem com não muito dinheiro. Como? Tendo a noção de que uma grande proveniência dos alimentos deve ser de origem vegetal, ou seja, hortaliças, legumes, leguminosas... Começarmos o almoço e o jantar com uma sopa de legumes parece-me um bom princípio; comermos um arroz, ao qual somamos couves e feijão... Para o alimento ser saudável, não tem de ser caro. A roda dos alimentos é um excelente instrumento em termos de educação alimentar. É feita por nutricionistas portugueses para a população portuguesa. Há outras questões importantes para nos alimentarmos corretamente. Eu posso saber escolher os alimentos, até ter condição económica para escolher os alimentos, mas depois também tenho de saber confecioná-los. Muitas famílias não sabem confecionar os alimentos. Se tenho os alimentos necessários, mas acabo por os adulterar na altura de os confecionar, já posso não estar a beneficiar a minha saúde. Interessa que a maioria dos nossos dias sejam saudáveis em termos de alimentação. Neste conceito de saúde, há exceções. O consumo de alimentos com excesso de açúcar é uma constante, e queremos que os portugueses tenham a noção de que o consumo excessivo de açúcar faz mal à saúde. Mas, para além desta noção, é preciso que no seu dia-a-dia consumam poucos ou nenhuns doces, o que não quer dizer que num dia festivo não possamos, para comemorar, comer uma fatia de bolo. O que importa é que a grande maioria dos nossos dias sejam repletos de equilíbrio alimentar.


O conceito de superalimento existe?

Existem alimentos que, no seu conjunto, são super naquilo que é o desígnio máximo, que é dar mais saúde. Não há nenhum superalimento, porque nenhum tira a vez aos outros. Não há nenhum alimento que, sozinho, possa fazer face às necessidades nutricionais dos indivíduos, com a exceção dos primeiros meses de vida, em que as crianças devem ter o leite materno. É o único momento em que nos podemos socorrer de um só alimento para nos dar a melhor saúde possível.


O vegetarianismo tem vantagens para a saúde? Quem quer iniciar este tipo de dieta que cuidados deve ter? A carne deve ser eliminada?

Não é fácil responder. Até porque a dieta vegetariana é um conceito muito vasto. É uma alimentação com predomínio de produtos de origem vegetal, e com o afastamento de produtos de origem animal, excluindo claramente a carne e o pescado. Mas pode incluir outros de origem animal, como os ovos e o leite. É uma alimentação que tem um conjunto de alimentos, como os cereais, os hortofrutícolas, as leguminosas, os frutos gordos e as sementes, muito interessantes para a nossa saúde e cujo consumo deveríamos aumentar. Coisa diferente é querermos que todo e qualquer português seja vegetariano. Podemos estar a falar de ovolactovegetarianos, que consomem produtos de origem vegetal, mas que somam os ovos e o leite, de lactovegetarianos, que consomem lácteos e todos os outros produtos de origem vegetal, ou dos ovovegetarianos, que consomem ovos e todos os outros produtos de origem vegetal, ou de vegetarianos estritos, ou vegan, que excluem todos os alimentos de origem animal. Ora, com um vegan há mais dificuldade em termos dias alimentares equilibrados, em que possamos garantir não haver défices nutricionais. Claramente necessitariam do auxílio de um nutricionista para não terem nem escassez de proteína, nem de ácidos gordos (por exemplo, de ómega 3), nem de vitamina B12, porque esta não vai ser encontrada nos produtos só de origem vegetal, nem de alguns minerais, como o ferro. Aos outros, quase que daria a mesma recomendação. Ou seja, não excluiria a hipótese de se aconselharem com um nutricionista, mas a tarefa deste pode ser menos difícil naquilo que diz respeito a supostos défices de nutrientes. Devemos advogar uma alimentação de base vegetal, como a nossa dieta mediterrânica, mas uma alimentação de origem vegetal completa – ou seja, o vegetarianismo – exige mais cautelas. Cada um tem o direito de decidir aquilo que quer fazer em termos alimentares. O que importa é que o decida em consciência e que tenha os instrumentos para tomar a sua decisão em termos da melhor saúde para a sua vida.




Entrevista: Deonilde Lourenço e Fátima Ramos | Fotografia: José Pedro Tomaz 

Fonte: Deco Proteste, online, 11 de fevereiro de 2021